Coluna | Sibila
A francesa Sidonie-Gabrielle Colette foi uma dessas personalidades com uma vida tão agitada e interessante que não é possível definir precisamente se seu nome segue reverberando pela intensidade de sua existência ou por sua produção artística em si. Pensando melhor, no caso de Colette, há como separar uma coisa da outra?
Colette obteve bastante sucesso em vida e é reconhecida como uma grande escritora. Trabalhou também como jornalista, atriz e roteirista, além de ter tido uma fase de interesse por fotografia.
Em 1893, aos vinte anos, Colette casou-se com Henry Gauthiers-Villars, mais conhecido como Wiily. Num dado momento da vida a dois, este homem percebeu o talento da esposa para a escrita literária. Publicou, então, em seu nome, a partir de 1900, uma série de romances interligados que tratam da trajetória da personagem Claudine desde menina até a vida adulta – o que muitos veem como obras autobiográficas ficcionalizadas.
A questão da autoria de seus primeiros quatro livros marcou a vida de Colette. Embora a escritora tenha conseguido conquistar os direitos autorais de sua série Claudine, usurpada por Willy, após a morte de Colette, o herdeiro de Gauthiers-Villars reouve os direitos.
Entre seu divórcio, em 1906, e seu segundo casamento, em 1912, Colette passou por muita dificuldade financeira. Para sobreviver, adaptou seus próprios textos e trabalhou como atriz, muitas vezes atuando no papel de sua personagem Claudine. Neste período também, Colette – que já havia tido relacionamentos homossexuais enquanto estava casada com Willy – envolveu-se amorosamente com algumas mulheres. Teve um longo romance com a Marquesa de Belbeuf, com quem atuou em Rêve d’Egypte, peça na qual suas personagens beijavam-se em cena e escandaliza o público.
De seu casamento com Henry de Jouvenel, nasce sua única filha, Colette de Jouvenel, em 1913. Como no primeiro casamento, este também foi marcado por infidelidades do casal. Antes da separação, em 1924, Colette, aos cinquenta anos, envolveu-se com seu enteado de dezesseis.
Mais de uma década depois, aos sessenta e dois anos, a escritora casou-se com Maurice Goudeck, dezesseis anos mais novo que ela, com quem viveu até sua morte em 1954. Durante a segunda guerra, após a invasão dos alemães, Goudeck, que era judeu, foi preso. No entanto, a prisão não foi levada às últimas consequências, e ele foi solto em função das relações influentes da esposa.
Colette foi apolítica – tendo se casado, inclusive, com dois homens de lados diametralmente opostos em termos políticos. Ela não se envolveu em causas, apesar de sabermos que o comportamento feminino é sempre político em alguma medida. É preciso considerar que foi bissexual, teve relacionamentos lésbicos assumidos, casou três vezes, foi publicamente infiel e envolveu-se com homens bem mais jovens. Tudo isso não pode deixar de ser levado em conta tendo em mente o papel social imposto à mulher, ainda que a Paris do fim do século XIX e início do XX, entre artistas e intelectuais, fosse um círculo de bastante liberdade.
Apesar de toda essa liberdade na qual viveu Colette, a voz que se ouve em sua obra reivindica, em certa medida, uma liberdade mais voltada para a esfera particular. O beijo em cena – passível de ser compreendido como um gesto político, de ativismo em favor do feminismo sáfico tão presente em Paris na primeira metade do século XX – não se converteu em discurso feminista.
Em 1910, ao ser questionada por um jornalista se era feminista, Colette respondeu que as sufragistas a desgostavam, que mereciam “o chicote e o harém”. Já em 1927, quando Walter Benjamin, em entrevista, pergunta à escritora se as mulheres deveriam participar da vida política, a resposta é tão exasperadora quanto à anterior. No entendimento de Colette, as mulheres não são capazes como os homens, pois têm o período menstrual, em que ficam irritadiças e instáveis, e, no entanto, a vida política não espera. É importante lembrar que as francesas só conquistaram o direito ao voto em 1945.
Já no fim da vida, Colette admitiu que, se a mulher não se interessou por política durante a juventude, por volta dos quarenta e cinco anos não teria mais como desenvolver uma consciência política. Claramente, a escritora estava falando de um momento quando a maior parte de sua vida já havia se passado. Ela percebeu que entre quarenta e cinquenta anos, período em que as mulheres começam a entrar na pré-menopausa, os hormônios – ou a falta deles – mudam seus efeitos no corpo feminino.
De modo mais conceitual, Simone de Beauvoir explica n’O segundo sexo a questão da alienação do corpo feminino. Segundo ela, é no período menstrual o momento em que o corpo se sente mais refém “de uma vida obstinada e alheia que cada mês faz e desfaz dentro dele um berço; cada mês, uma criança prepara-se para nascer e aborta no desmantelamento das rendas vermelhas; a mulher, como o homem, é seu corpo, mas seu corpo não é ela, é outra coisa.” Já na menopausa, “a mulher acha-se libertada da servidão da fêmea […] sua vitalidade continua intacta, entretanto não mais é presa de forças que a superam: coincide consigo mesma.”
Apesar de uma aparente concordância, Beauvoir concluiu o que hoje nos parece tão evidente, mas não o foi para Colette em sua juventude, o fato de a fisiologia não poder criar valores, é a sociedade que reveste dados biológicos de tabus e leis.
É interessante observar como, apesar de seus posicionamentos negativos em relação ao feminismo, Colette é lida como feminista na atualidade. Além de sua vida pessoal transgressora e de sua obra de caráter libertário, para Beauvoir, há também a questão estética, diversa da maioria das escritoras.
No segundo volume d’O segundo sexo, a filósofa afirma que Colette tinha a rara qualidade entre escritoras de escrever com uma “espontaneidade refletida”. É em uma crítica à escrita confessional por si mesma que Beauvoir argumenta a necessidade da pessoa que escreve estabelecer uma “relação interindividual, um apelo ao outro”. Seria preciso “escolher, rasurar”, sacrificar a si a fim de “ousar construir-se”.
E Colette ousou. Ainda de acordo com Beauvoir, “para agradar basta criar miragens, mas uma obra de arte não é uma miragem, é um objeto sólido; para construí-la cumpre conhecer seu ofício.” Colette não teria se tornado uma grande escritora apenas por seus dons e seu temperamento. Sua vida exigiu de sua “pena um trabalho cuidadoso […]: de Claudine a Naissance du jour, a amadora tornou-se profissional: o caminho percorrido demonstra sobejamente os benefícios de um aprendizado severo.”
Com sua história de vida pessoal e artística, de escolha, rasura, sacrifício e ousadia, a frase que dá título ao texto – escrita por Colette em um artigo referindo-se a outra pessoa – pode ser perfeitamente aplicada a ela mesma: “quão sólida é uma mulher!”
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Renata de Castro ( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.
Imagem: Henri Manuel