Coluna | Sibila
De onde ela vem, são bem-vindas as chegadas1
Começo a maior parte dos textos da Sibila contando como as escritoras chegaram até mim: por meio de outra escritora, por indicação de amigas, por referências em filmes ou séries. Todas essas situações já foram aqui narradas. Mas o caminho pelo qual a angolana Ana Paula Tavares me chegou é mais insólito.
Há cerca de uma década, em uma pequena escola do interior de Sergipe, onde eu trabalhava, tive em mãos um livro distribuído nas escolas públicas pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola. Era um pequeno livro de poesia pelo qual me apaixonei de imediato. Como vivíamos na era do facebook, procurei virtualmente o autor do livro e contei-lhe sobre o prazer que foi conhecer sua escrita.
Continuei acompanhando seu trabalho pelas redes sociais até o natal de 2018. Naquele dia, quase na virada da noite, recebi uma mensagem do escritor. Fiquei animadíssima. Achei que ele teria lido algo do que eu já havia publicado e que vinha conversar sobre poesia. Para minha tristeza, apesar de toda sua sensibilidade de bom poeta, ele era apenas mais um homem sozinho e entediado, desejando ter conversas picantes com qualquer mulher que ele acreditasse estar disponível para tal. Ao me recusar a isso e insistir na poesia, ele me recomendou ler uma escritora de Angola chamada Ana Paula Tavares.
Embora a situação tenha ficado em minha memória como um acontecimento violento, aceitei Ana Paula Tavares como uma prenda, conforme dizem os angolanos. Ou melhor, Paula Tavares, como assina quando escreve versos, deixando o nome completo para a prosa e para sua persona de professora e historiadora. Ao escrever seu nome em um site de busca naquela noite, o primeiro poema que me apareceu foi um poema erótico, circum-navegação:
Em volta da flor fez
a abelha
a primeira viagem
circum-navegando
a esfera
Achado o perímetro
suicidou-se, LÚCIDA
no rio de pólen
descoberto.
Este poema compõe seu primeiro livro, Ritos de passagem, publicado em 1985, quando Tavares estava com trinta e três anos de idade. O livro não foi muito bem recebido à época por alguns de seus pares. Consideraram-no impróprio às senhoras.
Paula Tavares conta, em entrevista recente ao podcast português A beleza das pequenas coisas, que publicou tarde por achar que versos que tratavam o corpo eram menos importantes que os que falavam da luta. Diz isso em alusão à literatura angolana voltada às questões políticas de seu país, marcado pelo processo de libertação e pela guerra civil.
Assim como no poema acima, o corpo também está presente em Rapariga, do mesmo livro:
Cresce comigo o boi com que me vão trocar
Amarraram-me já às costas, a tábua Eylekessa
Filha de Tembo
organizo o milho
Trago nas pernas as pulseiras pesadas
Dos dias que passaram…
Sou do clã do boi –
Dos meus ancestrais ficou-me a paciência
O sono profundo de deserto.
A falta de limite…
Da mistura do boi e da árvore
a efervescência
o desejo
a intranquilidade
a proximidade
do mar
Filha de Huco
Com a sua primeira esposa
Uma vaca sagrada,
concedeu-me
o favor das suas tetas úberes.
Aqui é possível lermos o corpo numa perspectiva sagrada por meio dos nomes “árvore”, “mar”, “vaca”, “tetas” – todos signos de fertilidade, acolhimento, proteção, alimentação, vida. Não obstante, o poema versa sobre esse mesmo corpo, o corpo da mulher, como objeto de troca e ganha um caráter de protesto.
A cultura retratada, o clã do boi, aparentemente equipara mulheres a gado, além de exigir um padrão estético da jovem, do sujeito poético – por isso o uso obrigatório da tábua de correção postural. Os versos escancaram metonimicamente a posição de mercadoria da mulher. Isto é, dentre os poemas de Paula Tavares, descobrimos o corpo feminino como sujeito do próprio erotismo, mas também a denúncia desse corpo objetificado. Sob um mesmo olhar contestatório, no livro Dizes-me coisas amargas como os frutos, de 2001, lemos Mulher VIII:
Que avezinha posso ser eu
agora que me cortaram as asas
Que mulherzinha posso ser eu
agora que me tiraram as tranças
Que mãe grande mãe posso ser eu
agora que me levaram os filhos
A voz do poema não é única. É a voz de um coletivo feminino, passível de ser lida/ouvida tanto em um cenário de paz política como em um de guerra, visto que a realidade das mulheres muda com bastante lentidão.
Falta ao sujeito poético autonomia – condição feminina histórica – como a uma ave de asas cortadas; foram-lhe tiradas as tranças – um símbolo de feminilidade – e os filhos. Ou seja, foram-lhe usurpadas a liberdade, a feminilidade e a maternidade. Há nos versos qualquer coisa de questionamento das possibilidades de ser mulher dentro de uma estrutura marcada por um sujeito indeterminado – “cortaram”, “tiraram”, “levaram”.
A língua é, então, em Paula Tavares também um meio de luta. Na entrevista mencionada anteriormente, a poetisa afirma que “a linguagem pode ser um instrumento de revolta e reivindicação”. Esta visão está presente por toda sua criação poética, como, por exemplo, no poema abaixo, do livro Como veias finas na terra, de 2010:
Estico até à seda
o fio das palavras
as palavras são como os olhos das mulheres
fios de pérolas ligadas pelos nós da vida
Os dois primeiros versos encaminham-nos a um metapoema, mas desembocam na história das mulheres. Há uma comparação entre as palavras e os olhos das mulheres. Tanto estes como aquelas têm fios que se alongam, que se esticam.
Não podemos esquecer que as pérolas são formadas como uma reação da ostra às impurezas que a penetram. No último verso, ficamos sabendo que as pérolas se unem umas as outras por meio de nós. É a imagem de um fio com sua pérola amarrado a outro fio com outra pérola: fios de memórias e identificação; “nós”, como um substantivo masculino plural; “nós”, como pronome pessoal na primeira pessoa do plural, “nós” femininos. As palavras como os olhos das mulheres não vêm sozinhos, trazem consigo suas histórias.
A poesia de Paula Tavares não é ingênua, muito menos comezinha. Ela nos convida a nos demorarmos nas palavras, em suas combinações, em seus ritmos, em suas camadas. Convida-nos a voltar muitas vezes, a olhá-la novamente e descobrir mais um pouco de seu corpo como espaço de gozo, de luta, isto é, de existência humana.
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1 Adaptação de dois versos do poema Do livro das viagens, em Manual para amantes desesperados.
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Renata de Castro ( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.