coluna | palavra : alucinógeno
como quem testemunha o desenho ambíguo da escuta, a escrita vem como ausculta e aguça os quandos e porquês de quem passa para dar um alô, mas acaba ficando para mais um tempo de papo. vive-se a banalidade, tão importante quanto aquela foto esquecida em nuvens – imagem bastante poética se não se pensar nisso como rede de dados, algoritmos e toda parafernália digital envolvida. é como quando a gente tira fotos ruins muito boas e vê nos poemas as imagens das melhores imperfeições, os fatos cotidianos, as conversas enviesadas, assim como moema vilela fez em seu livro. há nesse acontecimento algo como uma herança por aquilo que fica, que depois a gente lembra com saudade – ou às vezes alívio, por já ter passado.
FOTOS RUINS MUITO BOAS
gosto
dessas fotos
ruins, no escuro
do bar
de alguém muito perto
muito longe
em movimento
um registro que não
captura. memória
que não se segura
na mão. a pulsação
de um grave
na caixa de som
alguém que se vira
que pega a mochila
momentos
de prodígios os mais banais
como um pé que apara
a garrafa que o novo casal
derruba sem ver e
quase se estilhaça
uma foto que se
se ausculta, respira
– queremos gritar
como nos acidentes
de filme, nas ambulâncias
para que todos escutem
e comemorem juntos
a glória – está viva
a gente se prepara. limpa o canto da boca, tira a gordura do dedo, levanta o celular e aponta a câmera para o imprevisível. e não adianta vir com essa história de que se prevê na imagem a apreensão do momento. papo furado. talvez a melhor de todas as fotos seja aquela que consegue captar o entreinstante. sabe aquelas fotos que são borrões, quase sempre destinadas à lixeira? então! mas, pelo lado do poema, a desfiguração dá corpo. não digo que seria a tradução da imagem em verso. não há tradução. a presença é exclusiva e dúbia. imagem e poesia se fazem no vozerio da linguagem. foto e poema se distraem por proximidades e se atraem (até lembrei do teatro mágico) na abstração própria de leituras encantatórias de alguém muito perto / muito longe / em movimento // um registro que não / captura.
memória / que não se segura / na mão… há quem diga serem as fotos um conjunto de lembranças (e até o são também), mas isso que o poema chama de memória, penso, tem mais a ver com a impossibilidade do palpável; e é tão forte, tão inatingível quanto presente, que, embora esteja longe do controle das mãos, incentiva a propagação de tantas vidas quanto for possível contar na ficcionalização poética do real. mais ainda: é quente e perto, a gente sente no corpo. pela leitura, há viabilidade de mundos, e nesse sentido a memória extrapola o caráter coletivo das lembranças para propor a exclusiva extravagância de outras realizações ou percepções do real. daí, mesmo que se imprima a foto – ou que se mantenha digital mesmo –, haverá, em um ou outro suporte, uma ficção. há também o gatilho para outras formas de presentificação daqueles instantes irrepetíveis, os quais evidentemente não foram e nem nunca serão captados totalmente. quando muito, apenas alegoricamente. fato que tem a ver também com nossa ânsia pela devoração de tudo que nos atravessa e nos compõe, nossa necessidade de saber dizer as coisas.
a gente vive sem perceber o acervo dos nossos futuros, e de algum modo se impacta quando se dá conta das pessoas que passam por nós na rua, com seus olhares, medos, desconfianças, sorrisos; com alguém que se vira / que pega a mochila e cria nesse gesto a redundância necessária para que a vida continue sempre estreante em nossos dias – momentos / de prodígios os mais banais. parece ser necessário pegar uma foto com as mãos inteiras e deitar nela todo o corpo, conforme a metonímia dos ouvidos. auscultá-la. porque, embora a escuta seja uma profundidade do ouvir, a ausculta enraíza ainda mais, muito mais, a amplitude do cuidado. a gente flagra a entrega que acontece nessa comunhão corporal, tão sutil quanto potente (como toda a ideia do livro, ainda que aqui o poema seja o crivo da escuta, nele há a concentração de um projeto incorporante). no poema se perscruta o lugar em que imagem e palavra se fundem e se perdem.
a corporeidade do poema afirma a pensatividade do gesto senciente. como a distração, que faz perceber no soslaio a figuração central de um dizer, esse estado de retravés (aqui lembrei muito de manoel de barros) deixa mais evidente no poema a condição ambígua do borrão de uma foto ou da fronteira semântica provocada pela poesia. uma foto que se / se ausculta, respira. se eu quisesse aqui ser muito acadêmico, diria que na raiz indo-europeia “aus-” se estabelece o caráter que retoma a metáfora de um ouvido metido mais profundamente no escutar, extrapolando-se a figura corporal de uma orelha, do significado de seu formato prático, para constituir a devoção, a restituição ou percepção desviante do ato visual-auditivo.
passo a morar dentro da reflixividade do “se” – “que se / se ausculta” – quando ele se repete no que arrisco chamar de falso enjambement. na retomada desse pronome entre um verso e outro, a hesitação causa ou cria o próprio sentido do que parece ser a linha condutora do projeto do livro, o qual comparece em cada poema, de formas diferentes. imagino que essa constatação dê muito pano pra manga, como num texto mais acadêmico, talvez. por enquanto, aqui nesta leitura, o que posso dizer é: a vontade de habitação.
não dá para fixar o olhar nessa foto que se ausculta. seria preciso, quem sabe, confiar nesse entrelugar do poema e, quase como num gesto suicida, deixar-se cair nele, de maneira atenta. assim fica mais fácil perceber o desejo de querer gritar como nos acidentes / de filme, nas ambulâncias. isso porque não se trata apenas de um registro banal, o que me lembra a importância de recuperar a não banalidade das fotos repetidamente tiradas. penso em guimarães rosa, quando dizia que fotos jamais se repetem: “Ainda que tirados de imediato um após outro, os retratos sempre serão entre si muito diferentes. Se nunca atentou nisso, é porque vivemos, de modo incorrigível, distraídos das coisas mais importantes”. então, ficamos chocados (para não perder ainda a ambiência rosiana) quando percebemos se tratar aqui de uma possível reparação. pois esse gesto de tirar um monte de fotos supostamente repetidas – situação marcada pela atualidade de nosso tempo – pode se presumir na ânsia clariciana do instante-já ou fomentar o ato contínuo de existir ainda mais no surpreendimento que cada foto é, mesmo quando aparentemente igualzinha à outra. repetir repetir – até ficar diferente (manoel de barros volta aqui como terceira margem).
moema e joão – o do grande sertão – se tocam quando apontam a distração como questão fundamental. jamais diria estarem em posição opostas, isso é bobagem. dão-se as mãos, cada um de seu lugar, completando algo que a gente sente como um projeto bem maior, o qual talvez consista no modo incorrigível de viver as situações banais mais importantes. a foto viva – cuja ideia só se revela no final do poema – antes, respira. e nesse espaço entre inspiração e expiração, ausculta. a vitalidade se firma pelas selfies, pinturas de sons, esculturas de imagens, arquiteturas de fugas, existindo enquanto houver a vontade de gritar para que todos escutem / e comemorem juntos / a glória.
p.s. li Fotos ruins muito boas (o livro) com o corpo desavisado. reagi aos poemas como se fossem instantes (e o são!); entendendo-os enquanto acontecimentos, cujo sentido de permanência se respaldaria pela movência gestual dos fatos. no entanto, seguindo a proposta desta coluna, concentrei-me no poema homônimo ao livro. então posso dizer que a ficcionalização poética do real – em alta na abrangência imagética dos atos – faria fronteira com o jeito adequado de se dizer um poema ao mesmo tempo em que me perguntei qual seria o jeito adequado de se dizer um poema, tendo em vista que gosto de acreditar que dizer um poema pode ser também escrevê-lo (ou auscultá-lo, como pudemos ler).
embora o livro tenha sido escrito durante a pandemia, entre 2020 e 2022, conforme a Moema já comentou em entrevistas, preferi não me concentrar nesse fato, deixando o presente poema me guiar. acredito que o projeto de um livro esteja contido em seus poemas, com maior ou menor visibilidade, dependendo da estrutura poemática ou mesmo da leitura que se fizer.
em relação à leitura aqui feita, penso que o enaltecimento da banalidade seria uma possibilidade de traduzir a angústia que vivemos durante o isolamento ocorrido em função da pandemia. além do mais, vi nisso um modo muito importante de deixar aparecer o trato com o poético, vigente no cotidiano, dando importância à nossa maneira de enxergar o que nos rodeia. assim, mediante as “fotos” tiradas, percebemos a sensibilidade na captação de determinado momento. no caso, mais ainda, a atenção ao borrado, ao que seria erro, aquilo que foge da padronização, cuja preocupação seja a composição estética, sem considerar muito que a estesia estaria mais na percepção crua do instante do que numa possível pasteurização da edição fotográfica. mas isso tudo, erro e acerto, beleza e feiúra, não são tratados como antagonismo na perspectiva da moema, e sim como composição ambígua do real, possivelmente ao considerar que tudo que nos afeta ajuda também a nos conformar. afora, claro, a intenção da ausculta como entrega, uma sacada importantíssima.
ah, acho legal dizer que na leitura que fiz comparecem uma citação do conto “O espelho”, de Guimarães Rosa, e do poema “Uma didática da invenção”, de Manoel de Barros. o livro Fotos ruins muito boas foi publicado pela 7Letras, em 2022. a propósito, esse é um dos melhores títulos de livros que vi por aí!
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Fábio Pessanha (Instagram / Facebook) é poeta, mestre em Poética (UFRJ) e doutor em Teoria Literária (UFRJ) com pós-doutorado em Estudos de Literatura (UFF). É autor de na escuta o gatilho (Rizoma Projetos Editoriais, 2023), A forma fugaz das mãos (Patuá, 2021), A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Ministrou cursos, rodas de leituras poéticas e oficinas de poesia online e presencialmente em diversos lugares, tais como: Faculdade de Letras da UFRJ, Biblioteca Parque de Niterói, COART / UERJ, Atelier Casa 4 de Arte e Filosofia, Livraria Ponte. Tem poemas publicados em várias revistas eletrônicas, assim como ensaios que tratam de seus estudos de poesia, publicados em livros e revistas acadêmicas.