ANNE SEXTON FOI DESSAS – RENATA DE CASTRO

Coluna | Sibila


 

Anne Sexton foi dessas1

Uma mulher é sua própria mãe.

Não só palavras são como abelhas enxameadas, como afirma o poema A poeta disse ao analista, mas também o são escritoras que sentem demais entre transes e presságios. Foi assim que, ao pesquisar sobre Sylvia Plath há alguns anos, encontrei sua contemporânea Anne Sexton. 

Plath e Sexton compõem o grupo de escritoras categorizadas pela crítica de sua época como confessionalistas – classificação que ambas rejeitavam por ser frequentemente usada de modo a reduzir suas criações literárias. Além da literatura potente que criaram, as duas escritoras também tiveram pontos em comum em suas histórias pessoais. Foram esposas, mães, depressivas e suicidas. 

Sexton começou a escrever por orientação de seu médico, como suporte ao trabalho de análise. Por sorte, a escritora foi muito além do uso terapêutico da escrita e se dedicou ao estudo do verso, criando uma obra de reconhecida consistência. Fez sucesso em vida em seu país de origem, Estados Unidos, e ganhou o prêmio Pulitzer por seu livro Live or Die, em 1967. 

No Brasil, até o ano passado, apenas os que leem em língua inglesa tinham acesso às obras de Sexton. Sua criação poética ainda não havia sido traduzida por aqui. Após quase cinquenta anos da morte da poeta, a editora Relicário publicou Compaixão, com tradução de Bruna Beber de Mercies: selected poems – uma coletânea organizada por Linda Sexton, filha de Anne. 

O primeiro poema que li de Anne Sexton foi In Celebration of My Uterus, poema que compõe a obra Love poems, publicada em 1969. De imediato, fui capturada pelo título deste texto em que a autora parte de uma situação particular para discutir a condição feminina de sua época – infelizmente, em muitos aspectos, persistente até hoje. 

Uma festa para o Meu Útero

Cada uma em mim é pássaro.
Então bato todas as minhas asas.
Queriam arrancar você de mim
mas não o farão.
Disseram que estava oco até não poder mais
mas não está.
Disseram que estava à beira da morte
mas estavam equivocados.
Você canta feito uma colegial.
Você não está dilacerado.

Caro peso,
para celebrar a mulher que sou
e a alma da mulher que sou
e o protagonista disso tudo e sua alegria
eu canto para você. Me atrevo a viver.
Olá, fantasma. Olá, birita.
Segura, protege. Protege o que contém.
Olá, solo de todos os campos.
Bem-vindas, raízes.

Toda célula tem vida.
Tenho bastante para satisfazer uma nação.
Basta que os povos tenham esses bens.
Qualquer pessoa, qualquer Estado diria:
“O bom é que esse ano voltaremos a plantar
e a antever a colheita.
Previmos a praga e ela foi exterminada.”
Muitas mulheres cantam juntas neste momento:
uma está numa fábrica de sapatos xingando a máquina,
uma está no antiquário tomando conta de uma foca,
uma está entediada ao volante de seu Ford,
uma está cobrando o pedágio,
uma está amarrando um bezerro no Arizona,
uma está enganchada num violoncelo na Rússia,
uma está mudando as panelas de lugar no Egito,
uma está pintando o quarto com a cor da lua,
uma está morrendo e relembra um café da manhã,
uma está se alongando num tapete na Tailândia,
uma está limpando a bunda do filho,
uma está olhando pela janela de um trem
no meio de Wyoming, e uma está
num lugar qualquer, e outras por toda parte
parecem estar cantando, embora algumas não
consigam cantar uma só nota.

Caro peso,
para festejar a mulher que sou
deixe-me carregar um lenço de três metros,
deixe-me batucar para as moças de dezenove anos,
deixe-me carregar tigelas para a oferenda
(se é este meu papel).
Deixe-me estudar o tecido cardiovascular,
deixe-me analisar a distância angular dos meteoros,
deixe-me chupar os caules das flores
(se é este meu papel).
Deixe-me virar certas figuras tribais
(se é este meu papel).
Para tanto o corpo precisa
que me deixe cantar
o jantar,
o beijo,
o apropriado
sim.

Como Anne Sexton escreve no poema A poeta disse ao analista, seu lance era com a palavra, somente a origem das coisas a arrebatava. Comigo tampouco é diferente. Então, volto várias vezes ao poema, entregando-me ao arrebatamento. 

Começo pelo título. Embora haja outra denominação para útero em inglês, recorrente nos poemas de Sexton – “womb” –, a palavra “uterus”, advinda do latim, foi a escolhida. Ou seja, não é celebrar o espaço onde se gesta em uma perspectiva ampla, como é o ventre. É celebrar um órgão específico. Há um efeito de estreitamento do olhar a partir do título. No entanto, ao longo do poema, a perspectiva se amplia como uma câmera que se afasta. 

A primeira estrofe parte da experiência particular de uma voz feminina: um sujeito indeterminado queria tirar-lhe o útero – seu interlocutor –, já que o órgão estaria morrendo, seria um órgão incomensuravelmente oco – “immeasurably empty” –, isto é, de um vazio que não pode ser medido. Se o conteúdo não pode ser medido, tanto menos seu continente. Quanto mede um útero? Como já disse Angélica Freitas, é do tamanho de um punho. Para o eu-lírico, este útero não só não está vazio, como ainda canta como uma colegial, visto que tudo nesta voz é pássaro, alado, livre, cheio de vitalidade.

A voz feminina segue a conversa, na estrofe seguinte, com seu útero, a quem chama de “sweet weight”. Esta é outra construção, desta vez sinestésica, que orienta o olhar: o útero é um peso, algo com conotação negativa; mas é doce. Há uma associação entre o útero e o ser mulher. O útero é denominado protagonista da existência feminina. O eu-lírico atreve-se a existir, a viver, mesmo com um útero cuja funcionalidade é questionada por um eles que o queriam extirpar pela sua suposta vacuidade.

A segunda estrofe termina com a ideia desenvolvida no início da terceira: a perspectiva da mulher-solo, saudando suas raízes – “welcome, roots”. Mais uma vez, a perspectiva se amplia, vai das células às terras e também ao controle dos corpos que gestam, em comparação à agricultura que subjuga a terra.

O poema apresenta uma sequência de mulheres em diversas atividades, em distintas formas de trabalho, que cantam juntas mesmo quando não sabem cantar. O canto ganha conotação de uma frequência que une a todas, a existência feminina. A sequência de atividades listada no poema remete-me a Virgínia Woolf. Em algum de seus ensaios, a escritora afirma – ou assim lembro – que as mulheres devem ter acesso a todas as possibilidades de ser para poderem descobrir do que são capazes.

Na quarta e última estrofe, sem deixar esquecer que o diálogo é com o peso doce que é o útero, o eu-lírico inicia uma sequência de deixe-me – “let me” – agir, deixe-me ser. Nos últimos seis versos, a voz diz ao útero que para ser, o corpo tem necessidade. Novamente, a perspectiva sai da parte para a inteireza. O corpo precisa cantar pelo jantar – “to sing for the supper”, expressão que conota fazer algo por recompensa, especialmente comida, ou seja, o princípio do trabalho –; pelo beijo, e pelo apropriado sim. Destarte, o poema volta à questão dos dois versos iniciais, à da liberdade. Liberdade para existir material e afetivamente. Liberdade que permite fazer as escolhas pelos sins apropriados. 

Não consigo dissociar este poema da ideia – desenvolvida por Simone de Beauvoir no Segundo sexo – de que a mulher é aprisionada por sua feminilidade, no sentido estrito da palavra, em referência à fêmea. Ouço a voz no poema questionar os papéis impostos, mas também questionar a si mesma em sua relação contraditória – justamente pelas imposições – com seu órgão doce, porém pesado. Ouço-a dizer: não abro mão do meu útero, mas não me limito a ele, não me limito a uma única forma de existir, a uma única forma de ser mulher. Sexton foi dessas.

As discussões na mídia sobre o PL 1904/2024 começaram na finalização deste texto. É-me inevitável não pensar sobre o controle que a estrutura patriarcal tem dos corpos femininos, dos corpos que gestam, reduzindo a existência da mulher a um receptáculo, mantendo essa opressão milenar incrustrada em nossa sociedade. Por mais quanto tempo poemas como este seguirão atuais?!

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1 Em referência ao poema The black art, traduzido na edição mencionada como Bruxaria.

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Renata de Castro 
( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e  De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.

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