ARQUEÓLOGA, ARTESÃ: IDEA VILARIÑO – RENATA DE CASTRO

Coluna | Sibila


Como un perro que aúlla interminable1

Em entrevista, quando perguntada sobre o que queria ter sido, Idea Vilariño respondeu “Um arqueólogo. Um artesão”. A poetisa uruguaia, de fato, foi ambos. Arqueóloga de si, artesã da palavra. Escreveu diários e poemas – além de ensaios, traduções e canções. Ana Inés Larre Borges chama-a de poeta da solidão, dos grandes amores, do ascetismo existencial e dos suicidas.

Idea Vilariño teve em vida, e segue tendo, sua poesia lida e reverberada principalmente em seu idioma, espanhol, mas também em outros como russo, inglês e italiano. No Brasil, foi traduzida por Faraco em 1996 – publicação a que não tive acesso, por isso proponho as traduções presentes no texto. No Uruguai, compôs a chamada geração de 45, junto a Mario Benedetti, Ida Vitale, Juan Carlos Onetti, entre outros. Seguiu publicando ao longo da vida, até 2009, quando morre aos 88 anos.

Sua biografia é repleta de situações trágicas, desde seus problemas crônicos de saúde a intensas e apaixonadas relações amorosas. Isso faz com que muitos entrelacem toda – ou quase toda – sua criação poética à sua vida pessoal. Ela mesma afirmava não querer publicar seus diários, mas não só os teve publicados ainda em vida, como os reescreveu, da mesma maneira que fazia Anaïs Nin. 

Vilariño dizia precisar escrever para viver os fatos. Atestamos sua afirmação literalmente em seus poemas, como em Adiós, que compõe um de seus livros mais populares, Poemas de Amor:

Aqui
longe
te apago.
Está apagado.

Assim, é um árduo exercício desconectar sua criação de seu próprio processo de vasculha e reorganização de memórias. No entanto, podemos desconsiderar a primeira e a segunda pessoa – Vilariño e, possivelmente, Onetti – do poema e pensar em como até mesmo o esquecimento precisa necessariamente passar pela linguagem. Essa elaboração deixa as marcas do atrito dicotômico entre lembrar e esquecer, aqui e longe, apagar ao escrever.

Certa feita, ao ser questionada se a poesia amorosa era o centro de sua vida, ela respondeu “Não. O centro da minha vida foi uma corporalidade invasora, ávida, que assediava meu trabalho de escrita”. Essa corporalidade – que é a base de sua poesia e que está presente em seus sete livros – é erótica. É, portanto, a sensualidade e a morte – se é que esta divisão pode ser feita –, a experiência do gozo, como no poema Buscamos, também de Poemas de Amor:

Buscamos
a cada noite
com esforço
entre terras pesadas e asfixiantes
esse leviano pássaro de luz
que arde e nos escapa
em um gemido.

Poemas de amor foi publicado pela primeira vez em 1957. Sua primeira edição, hoje peça de colecionador, era manuscrita, composta por dez poemas em vinte folhas soltas e numeradas dentro de um envelope preto. À nova edição lançada cinco anos depois, uma dedicatória a Juan Carlos Onetti foi acrescida; anos depois, retirada e, mais adiante, reposta. 

É também desse livro o poema Después, de 1952, que explora a ideia das transformações operadas no “eu” após o gozo e a sensação de plenitude, de renascimento:

É outra
talvez seja outra
a que vai retomando
seu cabelo seu vestido sua maneira
a que agora recupera
sua altura
seu peso
e depois de sessões luxuriosas e ternas
sai inteira e pura pela porta
e não procura saber
não precisa
e não quer saber
nada de ninguém.

A partir da leitura de Poesía Completa – edición aniversario –, organizada por Ana Inés Larre Borges, editada por La suplicante em 2020, podemos notar esse erotismo latente em sua obra como um todo. Nessa edição, lemos textos como Sí. Hay una mujer, escrito em 1942, disposto na coletânea Poemas Anteriores: 

[…]
Ela fala com as pessoas, ela ri, até mesmo come
e também tem um nome que talvez seja um eco
mas ninguém paga seu preço sobre-humano
quando estende aos homens suas ofertas de fogo
[…] 

A edição mencionada revela-nos que esse último verso apresenta variações. Em seu diário, Vilariño registra “quando oferece aos homens doces rosas de fogo”. E mais adiante no poema, o verso “e os homens procuram-na, ferem-na ou esquecem-na/ sem vê-la, sem sabê-la” também tem a variação “os homens procuram-na, roçam-na ou esquecem-na”.  

Esses quatro versos apresentam uma reflexão existencial sobre o ser feminino apresentado no poema, “una mujer”. “Ela” tem um nome, que não é dito no poema, algo que advém sempre do outro, dado pelo outro. No entanto, não há outro que assuma a responsabilidade do existir “dela”. Este existir passa pela experiência erótica com homens, que, embora a toquem, a rocem, não a conhecem e a esquecem. 

Essas variações parecem pesar o grau de erotismo das construções metafóricas, já que “rosas de fogo” sugere uma vulva, enquanto “ofertas de fogo” é um termo mais amplo. Contrariamente, acontece na troca do verbo “ferir” pelo verbo “roçar”. Este último tem sentido mais abrangente, que pode denotar tanto uma ação dolorosa como ação prazerosa. 

Idea Vilariño quase não escreveu em seus últimos vinte anos de vida, tendo começado a reeditar seus livros a partir da década de cinquenta, ampliando-os, acrescentando novos poemas. No entanto, há ainda poemas como Tal vez no era pensar, la fórmula, el secreto, também escrito em 1942 que acabou ficando inédito por muito tempo. Segundo Borges, este poema compunha um livro que não chegou a ser publicado pela poetisa.

[…]
Talvez não fosse pensar a fórmula, o segredo
senão se amar e amar, perdida e ingenuamente.
Talvez pudesse crescer como uma flor ardente
ou ter de semente um profundo destino
ao invés desta lucidez amarela terrível
e deste estado de estátua com os olhos vazios.
[…]

Os poemas de Vilariño estão constantemente buscando a realização erótica e a vivência da paixão amorosa como fuga da realidade atroz. Seu primeiro livro publicado, La Suplicante, era, na verdade, uma plaquette com cinco poemas de grande intensidade erótica e imagética como podemos ler abaixo em dois deles: 

VERÃO
Meio-dia

Transparentes os ares, transparentes
a foice da manhã
os brancos montes tépidos, os gestos das ondas,
todo esse mar, todo esse mar que cumpre
sua profunda tarefa,
o mar ensimesmado,
o mar
nessa hora de mel em que o instinto
zumbe como uma abelha sonolenta…
Sol, amor, açucenas dilatadas, marinhas,
Ramas loiras sensíveis e macias como corpos,
Vastas areias claras.
Transparentes os ares, transparentes
as vozes, o silêncio.
Às margens do amor, do mar, da manhã,
na areia quente, trêmula de brancura,
cada um é um fruto amadurecendo sua morte.

A flor de cinza

O amor… ah, que rosa
Possua-a, segure-a, eleve-lhe águas doces e puras,
Vele a milagrosa ascensão do perfume
e essa névoa de fogo que a contorce em pétalas.
O amor… ah, que rosa, que rosa verdadeira.
Ah, que rosa total, voluptuosa, profunda,
de caule ensimesmado e raízes de angústia,
advindo de terras terríveis, intensas, de silêncio,
porém rosa serena.
Possua-a, segure-a, sinta-a, e antes que ela sucumba
Embriague-se em seu cheiro,
Crave-se nas espadas do amor, essa flor,
essa rosa, ilusão,
ideia da rosa,
da rosa perfeita.

Em Mediodía, vemos que, apesar do cenário lânguido e deleitoso – o que poderia nos sugerir a fusão dos corpos e dos seres em gozo, como a natureza marinha e ensolarada do verão – a experiência erótica é tão particular quanto à experiência de morte. 

Já em La flor de ceniza, temos uma dupla construção. Em um primeiro plano, a rosa é explicitamente comparada ao amor. Todavia, essa rosa também parece estabelecer relação com a vulva, fonte de prazer. “A flor de cinza” pode ser uma flor enlutada, visto que o amor vem “de terras terríveis, intensas, de silêncio”; mas também pode ser a “flor de cinza” aquela em quem se ateou fogo, fazendo com que ela se contorça “em pétalas”, em um abrir-se nas extremidades enquanto seu caule, sua base, sua sustentação é interna – o clitóris?

É um poema que evoca os sentidos, sobretudo do olfato e do tato; que constrói um cenário de sedução e embriaguez, cheio de “névoa” e “perfume”. No entanto, é finalizado com uma reflexão filosófica. O amor é verdadeiro no quinto verso, quando é amor carnal, quando é rosa molhada de “águas doces e puras”. Já nos últimos três versos, o amor torna-se uma ilusão, uma “ideia” de amor perfeito. Isto é, o amor perfeito é idealizado e, portanto, é uma ilusão. Apenas o amor passível de ser experimentado sensorial e sensualmente é verdadeiro, porém efêmero.

Durante todo tempo de criação poética, Idea Vilariño escreveu poemas curtíssimos, materializando sua relação com a negação e com o silêncio. Em 1980, ela publicou No, com trinta poemas. Assim como com outros livros, No foi tendo poemas acrescidos a cada edição, chegando a cinquenta e oito poemas curtos. 

Para finalizar, deixo aqui, então, o último poema de No, disposto dessa forma pela própria Idea, o último poema de sua Poesía Completa:

Inútil dizer mais.
Nomear concretiza.

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1 Primeiro verso do poema 44 de No.
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Renata de Castro 
( linktr.ee ) é poetisa, professora, tradutora, feminista e doutora em Literatura. Tem três livros publicados: O terceiro quarto (Benfazeja, 2017), Hystéra (Escaleras, 2018) e  De quando estive em Alto-Mar: poemas de afogamento e algumas mortes felizes (Escaleras, 2021). Fez parte das Antologias Poéticas Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2016), Damas entre Verdes (Selo Senhoras Obscenas, 2017), Senhoras Obscenas (Patuá, 2019) e da antologia bilíngue de poesia contemporânea de escritoras brasileiras e cubanas Sem mordaça. Sin mordaza (2021). Alimenta uma conta no Instagram com conteúdo relacionado à Literatura, em especial à Poesia.