NA VARANDA – THÁSSIO FERREIRA

Coluna | Alguma coisa em mim que eu não entendo


 

Quando o cigarro acabou, chamei-o para dentro das minhas pernas. Veio, naquela ginga gostosa, e sentou no chão de lajotas frias, aninhando as costas no meu peito e descansando os braços sobre meus joelhos. Enquanto as respirações se compassavam, um clima de prenúncio que pairara todo o fim de semana pareceu quase brilhar no ar da manhã, como se expirássemos palavras (ainda) não ditas mais que gás carbônico. Pus os dedos a correr sobre a pele dele, desde os ombros até os punhos, e talvez tenha sido involuntária senha, impulsos elétricos se entranhando até ebulirem. Senti um arrepio leve: algo prestes a romper. Esboçou se contrair, inspirou mais forte e principiou baixinho:

— Marlos, eu…

Interrompi — antes que o não dito se rasgasse por completo (porque é muito difícil cicatrizar o corte das palavras na vastidão do possível, separando sem piedade o que é do que poderia ser):

— Eu sei.

A pele se eriçou mais: em riste, feito faca.

— E você…?

Será que o impedir de falar — ou me ausentar de responder — tornaria a dor menor?

— Você sabe…

O que afinal significa eu te amo? E como explicar, a quem tem sede, este entremeio — largo feito uma neblina, cujo fim nunca sabemos identificar com precisão — em que se ama o corpo de alguém, com a volúpia do desejo que só a carne pode causar, e se ama a voz, o sorriso, seus jeitos de dormir, estalar os dedos, contar da infância, entrelaçar seus pés aos nossos e até a rabugice matinal, antes do primeiro café preto, mas. Porém, contudo, entretanto, todavia, como numa lição antiquada de gramática, ou álgebra, sem alcançar o ponto impalpável em que a soma desses amares resulta na limpidez de (um) eu te amo, cortando e dissolvendo a neblina feito enormes e poderosas quentes mãos?

Encolheu-se dentro do meu abraço, quase a se proteger de mim. Desencostou a cabeça do meu ombro, pescoço, queixo, e a pendeu para frente, até se apoiar no braço oposto ao do lado pra onde antes olhávamos juntos. Apertei-o mais forte, como a dizer que estava tudo bem. Não reagiu. Ficamos um tempo ali, mastigando nossos inalcances. As respirações aos poucos se descompassaram e senti uma gota escorrer por baixo do braço dele sobre o meu. O esquerdo, no qual afundava os olhos em mudez, feito os escondesse.

Lembrei um poema do Bandeira: algo sobre os corpos se entenderem, mas as almas não. Quase tudo me lembra um poema, se eu pensar sobre. Era o que eu fazia, enquanto sentia outros fiapos de sonhos salobres escorrerem por nossos membros: pensava sobre. Por que diabos não conseguia — melhor dizer desconseguisse, ou inconseguisse, assim: quase muito, prestes, à beira, ao rente, no triz, mas nunca não chegando, o alcançar — por que não conseguia tornar o que diz o poema, esse entendimento das carnes, no amor mesmo, num tipo de amor do corpo pelo corpo, matéria amando matéria, a(o ponto de) me permitir dizer eu te amo com a mesma verdade que usava para (deixar de) dizer que não.

             Mas
             desconseguia
             inconseguindo
             calado.

_______________________
Thássio Ferreira
 é escritor, autor de (DES)NU(DO) (Ibis Libris, 2016), Itinerários (Ed. UFPR, 2018), agora (depois) _(Autografia, 2019) e Nunca estivemos no Kansas (Patuá, 2022). Tem poemas e contos publicados em revistas e antologias, como Revista Brasileira (nº 94), da Academia Brasileira de Letras, Escamandro, Gueto, Mallarmargens, Ruído Manifesto, Germina, Revista Ponto (SESI-SP), aqui na Vício Velho, InComunidade (Portugal), e outras. Seu conto _Tetris foi o vencedor do Prêmio Off Flip 2019, e seu livro inédito Cartografias, finalista do Prêmio Sesc 2017. Foi editor e curador da Revista Philos de Literatura Neolatina. Mantém página no Facebook e o Instagram