MANOEL DE BARROS E OS ENTULHOS NECESSÁRIOS AO POEMA – FÁBIO PESSANHA

|palavra : alucinógeno
por fábio pessanha

do entulho de quando se escreve um poema feito de escombros aqui chegamos. “escombros” é uma imagem forte na poética de manoel de barros. talvez seja toda uma poética dotada de restos e do que não tem serventia, do que na prática se pratica pela inutilidade – o inutensílio que é mais que objeto, que é também um lugar. o poema é um lugar na mecânica do poeta ou, quem sabe, seja o poeta o próprio lugar de acontecimento da poesia; ou ainda, e mais provável, seja a linguagem o lugar onde poeta, poema e poesia conjuram o inequívoco instante em que o mundo sempre de novo se reinicia.

o poema que traz a gente a essa prosa é um exercício de recomeços. diria até que seria uns pertences desconexos que se juntam ao que desde sempre fora um núcleo repartido, mas ao mesmo tempo vigente na locução de seus conflitos. presente em Arranjos para assobio (1980), é a décima primeira parte de “Sabiá com trevas” e se mostra como um corpo extraviado dos conformes regulamentares. seria talvez uma lacuna autopreenchida dele mesmo, quando se declara a aceitação dos destroços da língua para a composição daquilo que conjuga e perfila o itinerário para o que não presta aos usos:

XI.
coisinhas: osso de borboleta pedras
com que as lavadeiras usam o rio
pessoa adaptada à fome e o mar
encostado em seus andrajos como um tordo!
o hino da borra escova
sem motor ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA
ferrugem de sol nas crianças raízes
de escória na boca do poeta beira de rio
que é uma coisa muito passarinhal! ruas
entortadas de vaga-lumes
traste de treze abas e seus favos empedrados
de madeira sujeito com ar de escolhos inseto
globoso de agosto árvore brotada
sobre uma boca em ruínas
retrato de sambixuga pomba estabelecida
no galho de uma estrela! riacho com osso de fora
coberto de aves pinicando
suas tripas e embostando de orvalho
suas pedras indivíduo que pratica nuvens ACEITA-SE
ENTULHO PARA O POEMA moço que tinha
seu lado principal caindo água e o outro lado
mais pequeno tocando larvas!
rã de luaçal

todo tecido por destroços, esse poema encena uma composição de apetrechos onde o que é tido como normal se desestabiliza ao aparecer conjugado a despropósitos verbo-imagéticos, tais como “osso de borboleta”, “escova sem motor”, “ferrugem de sol” e assim vai até o final. desatinos linguísticos são apresentados por uma palavra no diminutivo – “coisinhas” –, a fim de possivelmente criar uma tensão de sentidos entre a maneira como tal palavra se apresenta e o que a partir de sua evocação se anuncia em metáforas promotoras de larguras semânticas. um detalhe também interessante são os dois pontos colocados logo a seguir de “coisinhas”, sugerindo uma enumeração, que no poema se faz caótica. isto é, estabelece junções a princípio inimagináveis, arranjadas seguidamente uma após a outra, sem que se mantenha uma conexão razoável entre elas. mas, na verdade, uma das potências do poema está exatamente na falta de razoabilidade inerente às proposições atentas ao normativo da língua, a fim de se figurar um contexto escasso de rotinas e muito rico de rupturas.

esses estranhos organismos palavrais são orquestrados por uma frase que aparece em dois momentos: “ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA”. esta pode ser compreendida como o elo reunidor que se impõe para além de convencionalismos linguísticos, colocando-se no interstício entre imagem e verbo; uma pronúncia tão própria da poética barriana, que é possível inaugurar num só poema o estratagema alicerçado pelo impraticável comum das regras.

como dito, a frase em destaque aparece em dois momentos: no primeiro, ela vem inteira, antecedida pelo sintagma “sem motor” que, por sua vez, funciona tanto como resultado de um enjambement – “o hino da borra escova / sem motor” – quanto independentemente, quando na linha em que se encontra situa um novo sentido em relação à frase destacada. nesse caso, a ideia é que mesmo sem motor, o entulho para o poema é aceito.

na segunda aparição da frase em maiúsculas, ela mesma é apresentada dentro de um enjambement, cujo corte em “ACEITA-SE” propõe outra possibilidade de leitura. nesse caso, a ideia de aceitação posta em evidência aponta para a abertura do poema em sua apresentação, isto é, aceita-se tudo realmente, o poema se torna um campo aberto de acolhimento do que não presta, do que não condiz com o sentido reto das explicações lógicas. na linha abaixo ao corte em “aceita-se”, destaca-se “ENTULHO PARA POEMA”, onde é possível notar que se propõe uma compreensão enfocada no escombro, funcionando este, seja como palavra ou ideia, enquanto núcleo poemático.

entulha-se tudo que pode, inclusive o que a princípio não poderia. mas aqui no poema, não há censura que o impeça de ruir contiguidades esperadas pelo comum das vozes normalmente bem aceitas. embora estejamos aqui na parte XI, o poema se compõe de XV partes, e nelas é possível se perceber a potência do inútil ou ainda da palavra como repositório de existências, já que na primeira parte de “Sabiá com trevas” se lê:

Um homem que estudava formigas e tendia para
pedras me disse no ÚLTIMO DOMICÍLIO
CONHECIDO: Só me preocupo com as coisas inúteis

Sua língua era um depósito de sombras retorcidas,
com versos cobertos de hera e sarjetas que abriam
asas sobre nós

presente na parte IX do poema, a gente encontra um dos momentos mais comentados da poética barriana:

O poema é antes de tudo um inutensílio.

saímos sem saber dizer se a língua se presta ao poema ou se a poesia alimenta a língua para exercer o máximo de sua densidade num poema. ficamos com as calças na mão, com a boca aberta para a sarjeta das palavras. encontramos um repertório de imagens que nos conduzem ao mais do mais da linguagem, para então ficarmos mesmo é no silêncio que o poema evoca de nossas descendências verbais.

“ACEITA-SE ENTULHO PARA O POEMA”, aceitam-se vozes que contradigam a certeza das vezes em que se bate o pé por uma palavra sem desvios. não existe palavra obstruída, tampouco que não tenha fuga para uma imagem que a desconcerte. tanto que o poema se encerra com uma estripulia linguística: “rã de luaçal”, onde a última palavra seria um entreposto entre lua e lamaçal; quem sabe até um “depósito de sombras retorcidas” na potência da linguagem que inventa o lugar mais propício para a rã, existente tão somente num poema: um espaço em que lua e lama se imbricam, se refundam enquanto espaço articulado entre terra e céu: um limite poético: quando limite não é compreendido por aquilo que enquadra ou delimita, mas pelo que liberta: “palavra aceita tudo”.

P.s. depois de passar os anos de 2015 a 2018 concentrado em minha tese de doutorado, estudando as poéticas de manoel de barros e paulo leminski, achei estranho não ter um textensaiopoético exclusivamente deles aqui na coluna. porém, de uma forma de ou de outra, os dois poetas aparecem mencionados em outros textos meus presentes neste espaço, mas achei que faltava mais protagonismo. por outro lado, essa ausência se explica porque a “palavra : alucinógeno” se tornou em mim um lugar onde eu pudesse ruir academicismos, escrever de uma maneira mais livre, já que eu estava há tempos atado à pesquisa para a tese. doutorado concluído, agora é festa mesmo. se faltava protagonismo, aí está o primeiro deles. e vem mais!