A HOMOSSEXUALIDADE COMO SUBTEXTO EM DOIS FILMES DE HITCHCOCK – CHARLES BERNDT

Coluna | Lorca


Hoje gostaria de voltar a falar sobre cinema, sobre a homossexualidade no cinema e, mais especificamente, a homossexualidade, que aparece de forma subliminar e alegórica, em dois filmes de Alfred Hitchcock. Rapidamente, pretendo discutir, ainda, um pouco sobre a homossexualidade, tantas vezes reprimida e escondida, na vida de muitos astros da indústria cinematográfica.

Comecemos com Rope, um filme de 1948, que no Brasil recebeu o nome de Festim diabólico. Na trama, temos dois jovens, Philipe Morgan e Brandon Shaw, que estrangulam um amigo, David Kentley, com um pedaço de corda. Para provarem a si mesmos que cometeram o crime perfeito, os dois preparam um banquete, onde recebem diversos amigos, incluindo a noiva e os familiares de David, e servem o jantar sobre o baú onde o corpo está escondido. Nesta reunião, está presente, ainda, o professor universitário Ruppert Cadell, interpretado por James Stewart, cujas aulas e palestras de modo inadvertido inspiraram o assassinato.

Desde o início do filme, o modo como Philipe e Brandon se relacionam evidencia uma relação bastante íntima, repleta de confiança, afetividade e companheirismo. Assim, durante todo o desenrolar da história, vemos os dois trocarem olhares, alfinetadas, tocando-se de leve, sem falar nos seus trejeitos, bastante afetados, que apontam para uma homossexualidade relativamente reprimida. Confesso que desde a primeira vez que assisti ao filme percebi que havia algo a mais ali, que não era apenas a história de dois lunáticos, que, por esporte e prazer, decidem assassinar um amigo em comum e correr o risco de serem descobertos, escondendo seu corpo sob a mesa onde serviriam um fabuloso jantar. Aquele corpo escondido, para mim, é o que os dois durante todo o filme tentam esconder: a homossexualidade e o fato de viverem juntos, como um casal, naquele apartamento. O assassinato seria, na verdade, a tentativa de se manterem no armário, de negarem aos amigos, à sociedade e ao mundo, reconhecidamente homofóbicos, a real natureza da sua relação[1]. O prazer e o sadismo, sobretudo de Philipe, de mentir e enganar a todos fica evidente em diversos momentos, principalmente quando mostra a corda com a qual enforcou David, como se dissesse: “Vocês se deliciam no local onde cometo meu crime, meu pecado, comem e bebem neste apartamento cujos hábitos e modos de vida certamente reprovariam e julgariam se soubessem a verdade”. De modo diferente, Brandon é aquele que se vê tomado pelo pânico, a ideia de ser descoberto e ter seu crime exposto o aterroriza e mortifica durante todo banquete. Neste jogo de morde e assopra, de mostra e esconde, em que fica evidente a hipocrisia de muitos convidados, as atuações de Farley Granger e John Dall, que interpretam Brandon e Philipe, respectivamente, não podem deixar de ser elogiadas. Uma vez mais, Hitchcock presenteia o público com um filme minuciosamente bem feito e genial, rico em detalhes e passível de diversas leituras.

No fim da trama, de modo previsível, mas bastante coerente, Brandon e Philipe são descobertos e quem o faz, como não poderia deixar de ser, é a personagem de James Stewart, que cumpre o papel de representar o conservadorismo e a hipocrisia da sociedade dos finais de 1940 e, talvez, da própria indústria de cinema de Hollywood, onde a homossexualidade ainda era um tabu dos grandes. Desse modo, o próprio  professor Cadell, no seu papel de professor universitário, que durante todo o filme se mostra um homem à frente do seu tempo, liberto de convenções e preconceitos sociais, aberto ao livre pensar, que havia encorajado, com seu pensamento e suas aulas, Philipe  e Brandon a cometerem o tal “crime” e, de acordo com nossa leitura, a assumirem quem são de verdade,  acaba por revelar sua verdadeira face, sua  hipocrisia, seu conservadorismo, seu preconceito. Então, incapaz de praticar o que defendia, o professor limita-se a repreendê-los e julgá-los, como se fosse de fato melhor e mais sensato do que eles.

O outro filme sobre o qual vamos tecer alguns comentários se chama Strangers on a Train, de 1951, conhecido no Brasil pelo nome de Pacto Sinistro, cujo protagonista, Guy Haines, também é interpretado por Farley Granger.

Neste outro longa dirigido por Hitchcock tudo começa em um trem, onde, na primeira cena, acontece um encontro “sinistro”, uma conversa pouco comum entre dois cavalheiros em um vagão da primeira classe. Guy Haines, um tenista bastante famoso no país, acaba conhecendo Bruno Anthony, um homem extremamente desequilibrado, retratado desde o início como uma espécie de psicopata, que propõe a ele um pacto sinistro, um plano macabro, em que cada um assassinaria alguém de quem se quer ver livre. No caso de Haines, essa pessoa é sua esposa Miriam, de quem quer se divorciar, para poder se casar com Anne Morton, a filha do senador Morton, o seu patrocinador. No que diz respeito a Bruno, a pessoa indesejável é seu pai, um magnata, que deseja internar seu filho em uma espécie de hospício, devido aos seus hábitos nada apropriados e à sua vocação para arranjar problemas.

A tensão que se estabelece entre Bruno e Guy na primeira cena, no encontro no trem, já aponta para o tom homoerótico do filme – há diversas insinuações, seja pelo modo como os dois se olham, pelo modo como Bruno toca no braço de Haines ou mesmo pela espécie de pacto que os dois estabelecem, ainda que seja contra a vontade do tenista. A verdade é que depois do encontro no trem, Bruno passa a perseguir a personagem de Farley Granger, chegando ao ponto de assassinar, de fato, sua esposa, Miriam, e chantageando-o, de modo a obrigá-lo a cumprir sua parte no plano, isto é, matar seu pai.

Assim, partindo para uma leitura mais minuciosa, olhando para o que está no subtexto, tal como em Rope, o que parece estar em jogo neste outro filme de Hitchcock não é o pacto que visa dois homicídios, mas o encontro casual entre dois homens e a chantagem que um deles faz, ameaçando revelar a verdadeira identidade do tenista Guy Haines, isto é, a sua suposta homossexualidade ou bissexualidade. A ideia expressa já no título do filme – “Estranhos no trem” [2] – aponta para esse hábito bastante comum entre homossexuais, sobretudo em tempos em que a homossexualidade era vista como algo anormal e que merecia ser vivido na clandestinidade. Homens, muitas vezes casados e pais de família, encontravam-se com outros homens, quase sempre estranhos, isto é, desconhecidos, em lugares ermos, em ruas vazias dos subúrbios, em parques e lugares escondidos, de modo a viver sua sexualidade, seus desejos e taras homoafetivas. Em verdade, ainda hoje, muitas vezes escondidos em perfis com fotos difusas, em sites e aplicativos virtuais, muitos indivíduos continuam a esconder-se e a viver uma vida dupla.

Guy Haines, um atleta de sucesso e reconhecido, então, se vê perseguido e chantageado por este homem que conhecera no trem, numa madrugada qualquer. A sua vida vira de cabeça para baixo. Não é difícil estabelecer uma relação com o brilhante filme Fatal Attraction (1987), em que a personagem de Michael Douglas é perseguida por Alex Forrest, interpretada pela magnífica Glenn Close, colega de trabalho com quem manteve uma relação extraconjugal durante certo tempo. De modo muito semelhante, no filme de Hitchcock, quase quarenta anos antes, Bruno Anthony persegue o tenista Guy, ameaçando revelar o que tramaram e fizeram naquela noite, no trem.

Há, no filme, diversos momentos que podem ser compreendidos como homoeróticos: desde breves encontros furtivos e conversas em cantos escuros das ruas até momentos como a fabulosa cena do carrossel, em que Bruno e Guy lutam, rolam no chão, agarrados um ao outro, brigando para ver quem dominará a situação. No desfecho, tal como também podemos ver no filme Fatal Attraction, a personagem “desajustada”, que foge dos padrões de normalidade, é obviamente punida e o homem branco burguês, casado e medíocre, que se recusa a reconhecer sua verdadeira identidade e prefere viver uma vida dupla, tem sua paz e tranquilidade restabelecidas, e pode enfim retomar sua vida infeliz, ao lado da mulher que não ama, mas usa para manter sua máscara exigida pela sociedade – tudo ficará bem, pelo menos até um novo encontro sinistro e proibido, talvez no trem, no ônibus ou mesmo no trabalho.

Pergunto-me, por fim, se ainda hoje temos filmes ou mesmo obras literárias[3] que continuam a tratar da homossexualidade desta forma velada, implícita, como algo a ser escondido ou, no mínimo, tratado com discrição. A resposta parece ser positiva. Ouvi falar, recentemente, de um filme nacional de bastante sucesso que, apesar de tratar abertamente sobre uma relação homossexual, em nenhum momento, nem mesmo na cena do casamento, vemos um beijo gay. Pergunto, intrigado, que tipo de casamento heterossexual acontece sem um beijo, sem esse tradicional e costumeiro gesto que sela um compromisso conjugal? A homofobia, então, parece que não saiu de moda e continua entre nós. A genialidade de um Hitchcock que conseguia falar sobre um assunto proibido e execrado pela sociedade de mais de cinquenta anos atrás contrasta, de modo claro, com a sociedade atual, que se diz tantas vezes progressista, gay friendly, mas que faz cara feia para uma cena de afeto entre dois homens ou se recusa a reconhecer que é homofóbica e preconceituosa ao apoiar discursos que não só humilham gays, lésbicas, bissexuais e transsexuais, mas que potencializam e incentivam todo tipo de agressões e crimes de ódio. Nesse sentido, concluo o texto elogiando pessoas como o ator Farley Granger, o astro dos dois filmes analisados acima, que teve a coragem de assumir e viver sua homossexualidade e, inclusive, já no fim da vida, em 2008, publicar com a ajuda do seu companheiro uma biografia, Include Me Out, em que fala sobre o assunto abertamente. Fica, ainda, a sugestão de dois documentários fantásticos, The Celluloid Closet (1995) e The Silver Screen: Color Me Levender (1997), que discutem e mostram como a homossexualidade está presente no subtexto de muitos clássicos de Hollywood.


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[1] Impossível não lembrar, por exemplo, do filme franco-italiano La Cage aux Folles (1976), dirigido por Édouard Molinaro –  ou de  Birdcage (1996), seu remake estadunidense, dirigido por Mike Nichols –, em que temos um casal homossexual que também precisa esconder sua homossexualidade por conta de algumas pessoas que vão receber em sua casa.

[2] Como não lembrar do nome de outro filme, em que a homossexualidade aparece de forma explícita, L’Inconnu du lac (2013), conhecido no Brasil pelo nome Um Estranho no lago?

[3] É importante mencionar o romance Cloro, publicado em 2018 e indicado ao Prêmio Jabuti de 2019, do escritor Alexandre Vidal Porto, que traz a história de Constantino, um homem de meia idade, que narra, após sua morte, sua vida armário, os conflitos do homossexual reprimido e que não consegue viver com plenitude a sua sexualidade.

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Charles Berndt (Instagram) é professor e cursa seu doutorado em literatura na UFSC. É viciado em utopias, em palavras etéreas, mas ainda não foi pra Nárnia por acreditar que dentro deste mundo há um outro possível, mais justo, sensível, igualitário e fraterno.

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