O ÚLTIMO POEMA, UMA LEITURA DE MANUEL BANDEIRA – FÁBIO PESSANHA

coluna |  palavra : alucinógeno


um último tempo para o que importa e principalmente para as coisas sem importância. o ávido inútil, incompreensível estado de tudo que se move. olhar para um poema e dizer: acabou. encerrar as mãos como se escrever fosse seu delírio mais duradouro. no extremo instante, encontrasse a fenda de cujo corte extraviassem as contendas duma vida ordinária. não há mais verso, imagem, fôlego. o ritmo andante enuncia a paragem no tempo controverso das sutilezas. num recorte onde o definitivo poema não finda uma poética, e sim a restabelece ao contexto das ficcionais despedidas, Manuel Bandeira encena a melancolia no adiamento de sua ida… para a qual nunca foi, na verdade.


O último poema

Assim eu quereria meu último poema

Que fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais
Que fosse ardente como um soluço sem lágrimas
Que tivesse a beleza das flores quase sem perfume
A pureza da chama em que se consomem os diamantes mais límpidos
A paixão dos suicidas que se matam sem explicação.


o drama de se pensar nos atos finais: aceno, beijo, poema, abraço, cena. a hora mais que hora de algo que se chamaria representação. mas a representação não acontece no poema, uma vez que este se realiza como realidade fundada na leitura do leitor, da leitora. o poema vigora como tempo das ocasiões tardias ou prematuras, fugidias e ratificantes de seu intenso presente. poema que é agora ou nunca, último e primeiro. quereria eu (ou não) que fosse este meu decisivo escrito. quereria apenas a vontade de ser naquilo que se tem aos poucos, ou na torrencial referência dos sujeitos. resistisse ainda a melancólica travessia para o estado derradeiro do nada, quando possível.

que fosse terno o poema, ainda que voraz na aversão por hiatos. presença nascida na despedida toante da última palavra dita, da última boca no ventre mágico do verso. quem me dera eu ser o terminal poeta cuja desolação me levasse para a pasárgada. lá fosse rei e amigo dos que nascem a cada instante. seria tão mais fácil construir um bom dia se o encontro não fosse afoito, e caso perguntasse na exata medida da curiosidade: do que são feitas as coisas mais simples e menos intencionais?

quando o choro fosse noite, amanhecesse encharcado pela secura das lágrimas – ardentes no arranjo vazio dos soluços. o mar para fora de sua salinidade contorna o relevo do peito no arfar do meu nome ao ser içado no mais forte fôlego: Bandeira. poema, que último fosse o gesto de sua taquicardia inesperada e alcançasse o extremo calor na ardência tardia de sua proclamação. das almas fossem feitas brisas ante a tempestade que se anunciava, até tomarem gosto pela tragédia e levarem consigo os crentes do paraíso.

poema, decisivo em seu fim, arrumaria com cuidado sobre o peito as flores gastas de tanto delas se retirar o olfato; belas, dada a dinâmica oracular de suas cores. reclamaria o cheiro por um triz distanciado da estrutura com a qual se arrumam a ilusão dos destinos. passarei a crer que nesse findo encalço se manterão as glórias enviadas ao despautério de nossa despedida e, assim, despertar o que atende pela ausência da própria escansão.

tivesse ainda a pureza da chama para desfazer a alotropia do carbono e reinventar a estrutura mais límpida dos diamantes. fizesse a lua descer da noite sem tocar em estrela alguma, a fim de trazer para perto a luta com seu dragão tatuado. queimaria com fogo forte a letra impressa e disso faria um manifesto em que sapos se refeririam ao adereço primal da semana na qual foram tomadas as escadarias da vanguarda. ao mesmo tempo, ficaria ciente de que ali se faria novamente um mundo. embora não fosse meu corpo presente, a presença do poema ora último talvez primeiro responde pela matéria de realidade incitada enquanto ainda houver quem me leia silente ou ferozmente.

desfrutasse finalmente, poema, dos que morrem por si próprios apaixonadamente. sem explicação é a beleza suicida dos versos, nascidos com a partida duma voz futuro-pretérita: assim eu quereria meu último poema. que tivesse em cada verso o lampejo da frase interrompida. o anonimato dos nomes cerrado em lábios calados desde o estalo da irrevogável imagem proferida. quereria assim meu poema, último na descendência pela cesura confortável. a pausa libertina na respiração das palavras, sua passagem, o intervalo findo como a estrela da manhã.

p.s. em 19 de abril de 2021 Manuel Bandeira faria 135 anos. num ano em que ainda é difícil qualquer comemoração, dada a tragédia que vivemos atualmente com a pandemia da covid-19, é importante não nos esquecermos – sobreviventes que somos – de nosso testemunho ante a poesia que nos aviva nesse tempo tão cruel. Bandeira passou a vida num adiamento da morte devido à tuberculose, mas só morre aos 82 anos. na verdade, ele foi vítima da ironia. quanto a este texto, aqui propus uma intromissão, mas me mantendo atento ao poema; deixando-me por ele ser atravessado a fim de que em meu corpo a palavra fizesse mais que cama ou habitação (se possível for haver mais que isso). ser cavalo não do poeta, mas do poema; e assim deixar que as imagens me (nos) conduzisse(m) para algum tipo de destino possível. publicado em Libertinagem  (1930), “O último poema” carrega a potência do sarcasmo, da sagacidade que compôs a poética bandeiriana, múltipla nos modos de composição. evidentemente, é um poema que em vez de encerrar uma trajetória, continua abrindo caminhos, tal qual este aqui nascido numa tentativa de incorporação poemática.

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Fábio Pessanha
 (Instagram / Facebook) é poeta, doutor em Teoria Literária e mestre em Poética, ambos pela UFRJ. Publicou ensaios em periódicos sobre sua pesquisa, a respeito do sentido poético das palavras, partindo principalmente das obras de Manoel de Barros, Paulo Leminski e Virgílio de Lemos. É autor do livro A hermenêutica do mar – Um estudo sobre a poética de Virgílio de Lemos (Tempo Brasileiro, 2013) e coorganizador do livro Poética e Diálogo: Caminhos de Pensamento (Tempo Brasileiro, 2011). Tem poemas publicados nas revistas eletrônicas Diversos AfinsEscamandroRuído ManifestoSanduíches de realidadeLiteratura & FechaduraGuetoEscrita DroideGazeta de Poesia InéditaMallarmargensContempoPoesia Avulsa e na própria Vício Velho.

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